Em abril, aconteceu o III Festival de Teatro de Sombras em Taubaté, SP. Juntamente com os Professores Valmor Nini Beltrame, Mário Piragibe e Alex de Souza estive debatendo, escrevendo e colhendo materiais para trocarmos com o público em geral e com os participantes da residência artística ministrada por Federica Ferrari, do Teatro Gioco Vita.
Segue, para apreciação, o texto escrito pelo Prof. Valmor Nini Beltrame sobre o debate: O Teatro de Sombras em tempos de crise e guerra, com grupo de teatro da Macedônia, Grécia, Espanha e Brasil:
Mesa Redonda: O Teatro de Sombras em tempos de crise e de guerra.
Por Valmor Nini Beltrame
Taubaté, dia 01 de maio. O FIS – Festival Internacional de Teatro de Sombras, num domingo frio e ensolarado, continua suas atividades reunindo interessados em discutir arte e sociedade. As dependências da Biblioteca Municipal de Taubaté se abrem para receber artistas, estudantes, professores e curiosos provenientes da cidade, dos municípios vizinhos. Também estão presentes os elencos, artistas convidados de outras cidades do Brasil como Uberlândia, Curitiba, São Paulo, Florianópolis, além dos integrantes dos grupos de teatro Alaluz Shadow Puppetry Theater, da Grécia; Cia. Ochojos, da Argentina; Shadows and Clouds, da Macedônia; a Cia. Karla Kracht & Andrés Baladiez, de Espanha; e os Grupos Brasileiros Cia. Karagozwk, de Curitiba; Cia. Quase Cinema, de Taubaté e Companhia da Sombra, da cidade de São Paulo.
A realização da Mesa redonda na Biblioteca Municipal inaugura a ocupação de parte daquele espaço pela Cia. Quase Cinema que pretende transformá-lo num lugar vivo, de encontro de grupos de teatro, de artistas da cidade.
Os organizadores do FIS e fundadores da Cia. Quase Cinema, Silvia Godoy e Ronaldo Robles, acolhem os presentes lembrando que a ideia é discutir o tema O Teatro de Sombras em tempos de crise e de guerra na perspectiva das diferentes culturas e realidades dos grupos de Teatro ali presentes. Ronaldo diz acreditar que, guardadas as proporções e peculiaridades, a crise que vivemos hoje no Brasil se dá também em outros países. E que por isso interessa refletir sobre como se situam os artistas em tais contextos, como criam, como se vêem diante destas situações.
O primeiro convidado a se manifestar é o diretor Krume Stefanovski da Macedônia. Ele conta que quando iniciou seus estudos universitários em Teatro vivia em Belgrado e justo neste ano de 1992 eclode a guerra da Sérvia. Cheio de esperanças e sonhos interrompe seus estudos em teatro. E aí percebe claramente que a arte é importante, mas a vida é mais importante, essa talvez tenha sido uma das grandes e duras lições. Ao mesmo tempo pode perceber o quanto a arte foi importante para “limpar” sua alma, para voltar a preencher sua alma. Em relação ao percurso do Grupo que há 10 anos atua com teatro de sombras afirma que eles trabalham com pouquíssimos recursos financeiros e que na Macedônia, nos últimos 25 anos, o teatro pouco tem se modificado.
Hoje, a situação de milhares de imigrantes instalados em campos de refugiados no país tem gerado muitas tensões. O Grupo Shadows and Clouds, sensível ao problema, sobretudo das crianças, vem realizando apresentações nos campos de refugiados onde elas se concentram.
Karla e Andrés, da Espanha, afirmam que depois do término da ditadura franquista, em 1976, o país viveu um importante momento de estímulo às artes. No entanto, em suas visões as ações se concentraram muito mais na construção de edifícios e equipamentos culturais e menos em programas de fomento para a criação artística. No entanto, este foi um período em que havia bastante trabalho para os artistas em geral e a quantidade de festivais de teatro que se realizavam no país demonstra bem esta época em que a situação era favorável. Com a crise econômica que passa a existir na Espanha a partir do ano de 2007, com as elevadas taxas desemprego, a situação se modifica visivelmente. Os recursos do Estado para esta área são drasticamente reduzidos. Um aspecto importante a ser destacado é que o planejamento de programas artísticos e culturais se alinha com as atividades turísticas. Isso significa que as ações artísticas devem se auto sustentar ou dar lucro. Muitos festivais de teatro de pequeno e médio porte que constituíam relevantes oportunidades de trabalho sucumbem. Sobrevivem os festivais que incluem em sua programação nomes de artistas com grande visibilidade, artistas reverenciados pela grande mídia e atraem público para o evento. O Estado adota este critério para auxiliar na subvenção dos eventos. Isso determinou e continua estimulando a realização de uma arte que eles consideram comercial, arte para atender o gosto do grande público. Os estímulos para a pesquisa e para a experimentação são raros. Andrés afirma que a crise, ao invés de unir as categorias artísticas, em sua opinião, os tem separado e desunido.
Neste contexto, Karla e Andrés pensam que o mais importante é fazer a arte que querem e que gostam de criar; para eles é fundamental a liberdade de criação sem ter que se ajustar às plataformas previamente definidas que acabam limitando o processo de criação.
A diretora Betty Kokaraki, da Grécia, bem humoradamente inicia dizendo que em seu país eles já se habituaram a nada pedir ao governo porque não existem recursos financeiros disponíveis. Por isso, já não pedem. Os recursos que o governo disponibiliza são para as Cias. comerciais. Para o teatro mais alternativo, grupo ao qual o Alaluz Shadow Puppetry Theater se alinha, não existe recursos financeiros tanto para criações quanto para circulação. Diante da grave crise econômica, mais a crise migratória pela qual passa o país, os artistas decidiram eles mesmos realizarem o que é possível em tal conjuntura. Eles ocupam um teatro e espaços alternativos desativados e optaram por passar o chapéu, ou receber do público o que cada um pode pagar para ver o espetáculo.
Betty afirma ainda que muitos artistas que fazem o teatro Karagiozis não o praticam somente por dinheiro, mas sobretudo, pelo prazer de fazer. O recente aprofundamento da crise no país obrigou grande parte dos grupos a “passar o chapéu” para custear um pouco das despesas. No entanto, essa prática não é nova. Muitos artistas jamais contaram com recursos públicos para as suas atividades. O que se observa, com o fechamento de diversos teatros, é que os artistas se uniram, eles ocupam estes locais com pautas de seus repertórios, organizam pequenas mostras ou festivais e as pessoas pagam o que podem. Essas ações ocorrem principalmente em comunidades, em diferentes cidades, praças e os espetáculos versam sobre questões atuais, políticas, que bem caracteriza o Teatro Karagiozis. Muitos artistas fazem apresentações gratuitas porque tiveram que buscar outras formas de sobrevivência e trabalham em restaurantes, dão aulas e outras atividades que lhes permite seguir fazendo teatro. A presença de grande número de imigrantes, refugiados da guerra na Grécia tem impactado o dia a dia das pessoas. Seu grupo acredita que elas necessitam de diferentes tipos de ajuda, por isso fazem apresentações teatrais nos campos e albergues de refugiados. Além disso, organizam pequenas oficinas com jogos, brincadeiras e cortejos com as crianças que ali vivem. Isso acaba envolvendo adultos que se integram ao acontecimento. Betty afirma: “percebo que olhar essas pessoas nos olhos já faz algum sentido para elas.” E observa que cresceu o sentimento de solidariedade entre os artistas e as pessoas.
Alejandro Bustos, diretor do Grupo Ochojos, de Buenos Aires, afirma que o país vive um momento muita peculiar, com um novo governo que inicia e tem posições diferentes em relação ao anterior. A mudança que se vislumbra reside no fato de o governo anterior apoiar financeiramente processos de criação e principalmente a circulação de espetáculos. Já o novo governo, pelo que tudo indica, vai reduzir este apoio. Afirma que a crise ou as crises presentes em nossos países são complexas e por isso acredita que nós artistas precisamos falar, expressar nossas opiniões sobre o que acontece em nossos países. E falar disso também para as crianças. Nosso papel é de ajudar a refletir sobre a nossa realidade.
Os estrangeiros presentes quiseram saber sobre o que ocorre no Brasil. Ronaldo fez uma rápida síntese dizendo que é bastante evidente quem atual presidente do Brasil será afastada de suas funções. As acusações que pesam sobre sua administração são de fundo mais político do que administrativo e legal, no entanto, a perda da maioria dos aliados no congresso levará ao seu afastamento. Os prognósticos não são animadores porque muitas conquistas populares conseguidas nos últimos anos são alvo de questionamentos. E certamente muitos programas no campo das artes e da cultura serão revistos.
É importante ressaltar que as apresentações dos representantes dos grupos foram permeadas por perguntas, respostas e um rico debate sempre traduzido por Silvia e Ronaldo. As perguntas giravam em torno de esclarecimentos sobre as diferentes formas de atuação dos grupos, sobre as interferências dos problemas sociais e econômicos nos processos de criação dos grupos e nas alternavas encontradas para superar as dificuldades para continuarem atuando.
A Mesa Redonda foi considerada por todos como um excelente momento de reflexão que permitiu ampliar o conhecimento dos presentes sobre as diferentes realidades e culturas de origem dos artistas ali presentes.
Foi importante ouvir do representante da Macedônia que o teatro pode ajudar a refinar a alma naqueles tristes momentos de guerra; foi estimulante ouvir dos espanhóis sua recusa ao teatro comercial reafirmando que para eles é fundamental poder se expressar com liberdade; o relato de um teatro solidário vivido por artistas gregos foi reanimador e esperançoso; foi fundamental a clareza dos argentinos lembrando a necessidade que nós artistas temos de expressar publicamente nossas opiniões sobre as crises que vivem nossos países.
Pouco antes do encerramento lembrei-me de um artigo de Brunella Eruli, publicado em 1997 na Revista PUCK N. 10, em que nos conta uma passagem com o escritor Italiano Gianni Rodari e quis compartilhar com os presentes. Eruli diz que, perguntado sobre a necessidade de se fazer arte para crianças, Rodari respondeu dizendo que sim, é muito importante porque aí reside a possibilidade de compartilhar com elas as nossas paixões. Isso nos leva a refletir sobre o que entendemos por paixão. Para Eruli certamente paixão pode ser compreendida de diversas maneiras, mas neste contexto, paixão pode ser entendida como a nossa recusa ao preconceito, à hipocrisia, à mediocridade, e às diferentes formas de injustiças; paixão pode ser a nossa coragem de ser o que somos e de expressar o que sentimos; paixão pode ser a consciência do dever que temos de querer transformar o mundo para melhor, e não nos contentarmos com as aparências; paixão pode ser vista como o nosso compromisso de fazer sempre o melhor; a coragem de não fazer como os outros, mesmo que seja preciso pagar por isso; paixão pode ser vista como a coragem de dizer não quando seria mais cômodo dizer sim; paixão pode ser a nossa capacidade de resistir.
Nossa tarde de reflexão encerrou com uma sensação de que o tema está longe de ser esgotado, mas já foi suficiente para reacender em nós o ânimo para seguir fazendo arte.